As novas regras para a obtenção do visto americano estão cada vez mais rígidas. Além disso, brasileiros que vivem nos Estados Unidos convivem diariamente com o medo de serem presos pelo Serviço de Imigração e Controle de Aduanas (ICE) e deportados para o Brasil apenas com a roupa do corpo. Em cidades como Boston, onde há grande concentração de imigrantes, muitos evitam sair de casa e até falar português em público, temendo represálias. Os noticiários mostram: os tempos estão duros para os latinos na América do Norte.
E não se trata apenas de percepção. De janeiro até agora, 2.159 brasileiros já foram removidos dos Estados Unidos em 23 voos fretados, e a expectativa é que 2025 registre um recorde histórico de deportações, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Esses voos haviam sido suspensos em 2006, após denúncias de maus-tratos investigadas por uma CPI no Brasil, mas voltaram a ser autorizados em 2018, após um acordo firmado entre Michel Temer e Donald Trump. Desde então, os números dispararam — e mesmo sob o governo Biden, o ritmo se manteve. Entre 2020 e 2024, mais de 7 mil brasileiros foram deportados, sendo 2021 o ano mais duro, com 2.188 repatriações. Em outubro de 2025, por exemplo, o programa “Aqui é Brasil” repatriou 110 brasileiros em um único voo, mostrando que o drama é coletivo e crescente.
O que essas pessoas têm em comum? Todas sonharam com o chamado “sonho americano”, tão cultivado entre nós por décadas. Quem cresceu nos anos 70 aprendeu desde cedo a amar os símbolos dos Estados Unidos. Aos sábados à tarde, a programação infantil era um portal para esse universo encantado. O Disney Club, com Mickey, Pato Donald, Pateta e tantos outros personagens, alimentava o imaginário das crianças em uma época sem internet e com poucos canais de TV. A vinheta mostrava o castelo da Cinderela, iluminado pelo voo da Sininho, embalado por uma canção que prometia: dreams come true — “onde seus sonhos se tornam realidade”.
Além disso, as séries americanas — ou os famosos “enlatados” — nos apresentavam ao modo de vida daquele país. Aprendíamos história com Daniel Boone ou Bat Masterson, viajávamos pelo tempo em Túnel do Tempo, explorávamos o espaço em Perdidos no Espaço. Havia ainda Jeannie é um Gênio, A Feiticeira, Os Flintstones, Os Jetsons e a inesquecível família Walton. Quantos adolescentes não suspiraram por John Boy, o filho mais velho que, ao final de cada episódio, anunciava o singelo “Boa noite, John Boy”, encerrando mais um dia na fazenda da Virgínia?
Com o tempo, descobrimos que a história real dos Estados Unidos estava longe de ser tão idealizada. Ainda assim, o desejo de conhecer de perto aquele país permaneceu. Quem nunca sonhou em andar pelas ruas de Nova York ou passear pelo Central Park? Hoje, porém, esses desejos parecem cada vez mais distantes diante das novas políticas de imigração. A sensação é de orfandade: fomos filhos de uma cultura que moldou nossos sonhos, mas agora esse “pai simbólico” não nos reconhece — e, pior, nos rejeita.
Não foram apenas os programas de TV. Músicas, roupas, comidas, filmes e até hábitos cotidianos nos ensinaram, por anos a fio, a admirar e valorizar a cultura americana — muitas vezes em detrimento da nossa própria. E agora, de repente, somos convidados a nos retirar de uma festa que também ajudamos a organizar.
Vivemos dias de incerteza e desalento, mas é justamente nesses momentos que a esperança precisa resistir. Que ela nos lembre de que um futuro mais justo e humano ainda pode florescer — nos EUA, no Brasil e em qualquer lugar do planeta.
*Maristela R. S. Gripp é doutora em Estudos Linguísticos pela UFPR. É professora do Centro Universitário Internacional Uninter, onde atua no curso de Letras EAD.
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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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