Música
Nego Bala transforma o sonho da liberdade em disco de estreia com a participação de Elza Soares
Marcelo Abdinego Justino Generoso estava sentado e reflexivo, durante a sua passagem pela Fundação Casa. Ali, aos 12 anos de idade, o jovem nascido e criado na Boca do Lixo, região central de São Paulo, sentiu um sopro em formato de melodia e, ao término do dia, ele tinha composto a música “Sonho”, que precisou cantarolar de forma sussurrada (repetidamente) para gravar a letra no pensamento. No dia 24 de novembro, agora com 23 anos de idade, ele lança o seu álbum de estreia, intitulado Da Boca do Lixo, com “Sonho” e mais oito faixas criadas em diferentes momentos da vida. O trabalho traduz o olhar de um garoto da Cracolândia (filho de uma mãe usuária de crack e de um pai batalhador) que estudou, trabalhou, viveu intensamente a rua e que acabou cedendo para caminhos que pareciam mais próximos, como o crime, mas que encontrou na música a sua emancipação. Sob a alcunha de Nego Bala, o artista revisita os dias que esteve privado da liberdade por meio de um curta-metragem que apresenta a sua vida e a sua obra. É como se o disco (e toda sua essência) fossem condensados no formato da trilha sonora de uma obra audiovisual. Idealizado pela joint venture AKQA\Coala.LAB e produzido pela Stink Films (mesma parceria responsável pelo vídeo de Bluesman, do rapper Baco Exu do Blues, vencedor de um Grand Prix na categoria “Entertainment for Music” do Cannes Lions), o filme está disponível no canal de YouTube de Nego Bala (assista aqui).
No curta-metragem dirigido por Douglas R. Bernardt, a passagem de Nego Bala pelo centro de detenção para jovens é reproduzida como ponto de partida para percorrer por novas possibilidades para além daqueles muros. Para isso, a faixa “Sonho”, que conta com a participação de Elza Soares, é utilizada no campo sonoro. “A gravação foi um flash de várias emoções e um misto de aprendizado monstro pelo qual passei”, afirma o MC. O roteiro – baseado em fatos reais – amarra passado, presente e futuro, mostrando como a dança e a música são sabedorias e tecnologias ancestrais capazes de conectar e também mudar a vida das pessoas, é a representação da luta e da história de um povo. Ele faz as pazes com a sua criança e transforma as lágrimas de tristeza em lágrimas de inspiração. No vídeo, há menção ao rap (com uma citação a “Vida Loka Parte I”, dos Racionais MCs) e também ao funk, gênero no qual o cantor e compositor se baseia para compor, mas sem limitar as referências. “A ideia central do disco era a de unir as minhas poesias em diferentes formas de fazer funk, criamos a atmosfera necessária para cada uma das letras, como um laboratório”, comenta Nego Bala.
“Diumjeitodiferent” tem um significado especial para Nego Bala por representar a contestação de quando ele se percebeu MC. Isso porque, na quebrada, as pessoas pediam para ele cantar, mas como não tinha nenhuma canção registrada, ele sempre soltava uma rima diferente, que surgia ali na hora. Aos 10 anos de idade, durante uma tarde, próximo à Praça Princesa Isabel, em meio ao fluxo e com parceiros, entre eles o Bebezão, ele soltou a letra de “Di um Jeito Diferente” no improviso, só na palma da mão. “Eu cantei muito essa música na quebrada, então virou um hino”, diz. Quando foi registrar em estúdio, a canção virou o que Nego gosta de chamar de “ópera funk”.
Além de “Sonho“, o disco Da Boca do Lixo traz outras canções que Nego Bala fez em um período em que estava privado de sua liberdade (aos 19 anos, ele teve passagem pela prisão). Trata-se de “Buraco no Céu“, “Cifrão In’ Pé“, “Da Boca do Lixo” e “Paradoxo“. A primeira surgiu em forma de improviso, algo recorrente no processo criativo do funkeiro. “Essa música foi como um fôlego para mim, eu tinha desistido de tudo naquele momento e ela veio”, ele recorda. “Cifrão In’ Pé chegou em uma tarde em que estávamos no pátio. Ela fala dos valores que vi em mim mesmo estando sem liberdade”, ele define.
Faixa-título do disco, “Da Boca do Lixo” é uma música que exalta. Nego Bala tem como missão dar auto-estima à comunidade e mostrar que a história dele vale ouro. Não à toa, o paulistano aborda resiliência, empoderamento e resistência. “Na cadeia, tem muito usuário que é do Centro. E os caras sentem fraqueza neles, chamam de nóia, de Cracolândia. Eu queria fazer uma letra que todos cantassem com orgulho. Uma semana depois, na visita, tava todo mundo cantando com orgulho”, ele lembra. “Paradoxo”, por sua vez, foi criada de dentro da cela. “Eu tava quietão e não me deixavam ficar na minha. Insistiram para eu mandar uma rima. Minha mente sempre tá a milhão, veio na espontaneidade e cantamos umas 30 vezes no corredor”, recorda.
“Som de Preto” é fruto de uma madrugada em estúdio. O instrumental veio antes em formato de beat, um boom bap, enquanto a letra foi feita no freestyle de ponta a ponta. “A ideia foi mostrar uma visão brasileira e consciente da coisa, então traz uma visão das antigas e também de agora, de se atentar nos recursos e na ancestralidade”, ele comenta. Ao longo do trabalho, Nego Bala mostra muitas das suas personalidades e dos diversos sentimentos que enchem o seu peito. Composta quando ele tinha 13 anos de idade, enquanto visitava a sua irmã, “Anjo” apresenta um lado romântico, por exemplo, e é resultado do exercício de criar a partir da escrita e não do improviso (recurso que sempre foi o ambiente mais confortável para ele). “É um lado meu que eu não tinha nem visto”, define. Completa a tracklist “Fumando do Verde”, que traz a atmosfera do baile em uma viagem sonora.
Não foram poucas as vezes que Nego Bala falou que lançaria um disco quando estivesse em liberdade. Essa meta foi fundamental para que ele se mantivesse em equilíbrio, mas também serviu de inspiração para os seus parceiros de dentro da detenção. “Quando você está preso, a única coisa que você tem para se libertar é a música”, afirma Nego Bala, que, hoje, materializa o seu sonho com o lançamento de Da Boca do Lixo – um trabalho em que Nego Bala teve participação de todo o processo, da idealização à produção musical.
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