Em uma era em que o mérito incomoda mais do que o erro, e onde a autenticidade é punida com o silêncio, a sociedade se vê diante do desafio de proteger a liberdade sem premiar a violência simbólica. Neste artigo, exploro como a mitológica Síndrome de Procusto reaparece na cultura digital contemporânea e como as recentes decisões judiciais abrem caminhos – e riscos – no enfrentamento desse fenômeno.
Vivemos uma era em que a ascensão é vigiada e a diferença, punida. Em meio à valorização do desempenho, da opinião e da visibilidade, multiplicam-se as estratégias de repressão simbólica contra quem se destaca. A chamada Síndrome de Procusto, inspirada na mitologia grega, traduz o comportamento social de silenciar, atacar ou desqualificar aquilo que escapa do padrão confortável. O mito se reinventa na sociedade digital: a cama de ferro tornou-se o algoritmo, e os alvos, todos aqueles que ousam romper consensos superficiais.
No ambiente virtual, essa síndrome ganha contornos específicos. O cyberstalking e o cyberbullying tornaram-se expressões recorrentes desse impulso social de nivelar por baixo. Observa-se a perseguição sistemática de indivíduos que expressam autenticidade, que pensam fora das bolhas digitais, ou que atingem algum grau de projeção. A internet, longe de ser um espaço de neutralidade democrática, reflete e amplifica a intolerância às diferenças, tornando-se terreno fértil para manifestações de ódio, difamação e exclusão pública.
Essa realidade não se restringe à esfera digital. Nas famílias, nas escolas e nas instituições, a lógica procustiana aparece quando há repressão ao talento que excede expectativas padronizadas. A resistência à inovação, o medo da superação e o desconforto diante do pensamento livre ainda são forças ativas na manutenção de estruturas hierárquicas e conservadoras. O mesmo padrão se reproduz nas políticas públicas que, em nome de uma falsa equidade, sufocam o mérito, desestimulam a excelência e reforçam a mediocridade.
Diante desse cenário, o papel das plataformas digitais tornou-se objeto de intensa discussão jurídica e social. O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a constitucionalidade da norma que condicionava a responsabilidade das redes sociais à existência de ordem judicial, enfrentou um dilema contemporâneo: o equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção contra abusos digitais. Por maioria, a Corte reconheceu que “plataformas podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros, mesmo sem decisão judicial prévia, em casos notoriamente ilegais”, como incentivo à violência, ameaças a instituições democráticas, ataques a crianças e adolescentes, ou apologia ao suicídio.
Houve, no entanto, divergência. Parte dos ministros advertiu que a eliminação da exigência de ordem judicial pode criar brechas perigosas para abusos privados e censura arbitrária. Segundo um dos votos vencidos, “a liberdade de expressão deve ser protegida inclusive contra julgamentos morais majoritários”. Já a corrente vencedora defendeu que “em situações graves e evidentes, a inércia das plataformas diante de conteúdos ilícitos pode configurar conivência e gerar responsabilidade direta”.
A decisão estabelece um novo paradigma jurídico: exige das plataformas digitais ação concreta na moderação de conteúdos notoriamente ilícitos, sem dispensar o controle judicial nos casos controversos, principalmente quando envolvem a chamada honra subjetiva. Trata-se de uma tentativa de responder aos riscos reais da desinformação, do discurso de ódio e da violência digital sem comprometer o núcleo essencial da liberdade de expressão.
Esse novo marco contribui também para a reflexão acadêmica mais ampla sobre os efeitos sociais da comunicação digital. A multiplicação de discursos radicais, a perseguição sistemática ao pensamento crítico e a aversão pública ao mérito indicam que a Síndrome de Procusto não é apenas um fenômeno psicológico, mas uma estrutura de poder que opera para preservar zonas de conforto e silenciar toda forma de desvio criativo ou intelectual.
Urge, portanto, desenvolver políticas públicas e mecanismos institucionais que assegurem a convivência com a diferença, a valorização do mérito sem elitismo, e a liberdade de expressão sem degeneração em discurso de ódio ou em libertinagem impune. A educação digital, o letramento midiático e a reformulação dos algoritmos são etapas indispensáveis para frear o ciclo de normalização da violência simbólica.
O mito de Procusto não é apenas alegoria. É diagnóstico. O desafio da sociedade contemporânea é resistir à tentação de mutilar ideias, silenciar vozes ou condenar talentos ao apagamento. A cama de ferro precisa ser desfeita. E isso exige coragem institucional, maturidade cívica e compromisso ético com a pluralidade.

Thiago de Moraes é jornalista, analista de discurso e pesquisador independente em temas relacionados à cultura digital, liberdade de expressão e regulação das plataformas.…