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Erosão cognitiva: alerta dos especialistas para o uso da IA na infância

(*) Sheron Mendes

JULIA ESTEVAM
06/10/2025 12h14 - Atualizado há 6 horas
Erosão cognitiva: alerta dos especialistas para o uso da IA na infância
Banco Uninter

Vivemos um paradoxo: a inteligência artificial (IA), ao mesmo tempo em que pode personalizar o ensino e facilitar tarefas, também ameaça corroer as bases da cognição humana. Pesquisas do Departamento de Saúde e bem-estar da Frontiers  in Psychology de 2025 chamam esse fenômeno de erosão cognitiva, a tendência de delegarmos tantas funções mentais às máquinas que acabamos atrofiando habilidades como memória, raciocínio crítico e criatividade.

Se para adultos essa dependência já preocupa, para crianças em processo de alfabetização o risco é ainda maior. Diferente do ato de sugar do bebê, que já nasce programado biologicamente, a leitura não é um processo inato do ser humano: ela precisa ser construída, sinapse por sinapse, em diálogo com o ambiente. Como destaca a neurocientista Maryanne Wolf, “cada criança forma um circuito de leitura único, envolvendo múltiplas áreas do encéfalo que se reorganizam para integrar visão, linguagem, memória e emoção”, diz ela.

A fase inicial da leitura e da escrita, portanto, não é apenas uma etapa técnica: ela envolve a capacidade de lidar com informações momentâneas, da atenção sustentada e da habilidade de organizar o pensamento em símbolos. Quando essas tarefas são transferidas a um chatbot, o cérebro infantil deixa de exercitar operações que sustentam o aprendizado ao longo da vida.

A teoria da mente estendida ajuda a compreender o dilema. Desde sempre utilizamos artefatos externos, do ábaco ao caderno, para expandir nossas capacidades cognitivas. Esses instrumentos não apenas registram ou facilitam cálculos, eles mobilizam o corpo e o pensamento. O ábaco exige raciocínio lógico e visualização numérica; o lápis e o caderno, além de exercitarem a coordenação motora fina, estimulam a organização sequencial, a reflexão e o pensamento crítico. São ferramentas que convidam à autoria, pois a criança precisa construir cada traço e elaborar cada ideia. Já a inteligência artificial generativa, quando usada de modo substitutivo, entrega textos, imagens ou respostas prontas. Nesse cenário, o estudante deixa de ser autor para se tornar espectador, perdendo a experiência essencial de “pensar por si”.

A Frontiers  in Psychology confirma essa preocupação. Em um de seus estudos, alunos que recorreram ao ChatGPT para resolver problemas de matemática acertaram mais exercícios, mas compreenderam menos os conceitos. Já estudos da Science & Education, também de 2025, mostram que muitos jovens simplesmente colam perguntas nos chatbots e recebem soluções sem elaborar raciocínios próprios. O resultado é a ilusão de competência, um placebo cognitivo que mascara fragilidades de base.

Isso não significa que a IA deva ser banida da escola. Ao contrário: quando usada como artefato complementar, ela pode oferecer feedback personalizado, auxiliar alunos com dislexia ou deficiência visual e enriquecer ambientes gamificados que estimulam engajamento. O problema não está na tecnologia em si, mas no modo como a incorporamos.

Na alfabetização, a prioridade deve ser garantir que a criança escreva, leia, erre e reflita com autonomia. A IA pode entrar como apoio, sugerindo hipóteses, ampliando vocabulário ou mediando diálogos. Assim como acontece com a calculadora, que só deve ser introduzida após a criança dominar números e operações básicas, a inteligência artificial precisa ser apresentada depois que os fundamentos da leitura e da escrita estiverem consolidados. Do contrário, corre-se o risco de pular etapas do desenvolvimento cognitivo e formar usuários dependentes, não pensadores autônomos.

A erosão cognitiva não é destino inevitável, mas consequência de escolhas mal analisadas. Proteger a infância desse risco exige prudência, e para isso, adotar IA na medida certa, formar professores para usá-la criticamente e cultivar na criança a consciência de que pensar é uma atividade insubstituível. Se quisermos uma geração capaz de inovar, questionar e criar, precisamos cuidar para que a IA seja ferramenta, não prótese cognitiva. Afinal, alfabetizar é mais que aprender letras, é aprender a pensar.

(*) Sheron Mendes é Bióloga, especialista em Neurociência do Comportamento e professora dos cursos de pós-graduação em Educação na UNINTER.


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JULIA CRISTINA ALVES ESTEVAM
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