O assassinato de Charlie Kirk não é apenas mais um episódio de violência política. Para a psicanalista Camila Camaratta, ele revela a força corrosiva de discursos de ódio que circulam e encontram legitimidade, seja nas redes sociais, seja em tribunas parlamentares no Brasil e no exterior.
“É tentador atribuir o problema apenas a líderes manipuladores ou a algoritmos de engajamento. Mais difícil – e mais necessário – é admitir que o radicalismo também se enraíza dentro de nós”, afirma.
As lições de Freud
Camaratta recorre às análises de Freud para explicar a dinâmica desses radicalismos. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), o psicanalista descreveu como, diante da incerteza, o sujeito se sente aliviado ao dissolver-se no grupo.
“O líder funciona como o ‘pai primevo’ – temido, mas desejado. Essa identificação cria a sensação de força e pertencimento, mas cobra um alto preço: na massa, o indivíduo sente-se invencível; desaparece o senso de responsabilidade, que o domina sozinho”, observa a psicanalista.
Já em O Mal-Estar na Civilização (1930), Freud acrescenta outra chave de leitura: viver em sociedade exige renúncia pulsional, sobretudo da agressividade. Essa repressão, explica Camaratta, não pacifica o sujeito, mas acumula ressentimento.
“O próximo, que deveria ser parceiro, torna-se depósito do que não suportamos em nós. Freud não poupa palavras ao afirmar que o próximo é também uma tentação para satisfazer a agressividade, humilhá-lo, torturá-lo e matá-lo”, lembra.
O ciclo do ódio
Ao juntar as duas teses, o quadro se torna mais perturbador: a dissolução no grupo e a obediência ao líder combinam-se à necessidade de descarregar agressividade sobre alguém.
“É nessa combinação que florescem os discursos de ódio. Eles oferecem identidade pela identificação e alívio pela projeção. Mas a promessa é enganosa. Eliminar o inimigo não elimina a angústia. A violência retorna sempre, à procura de novos alvos”, afirma Camaratta.
Freud já havia advertido: não existe sociedade sem conflito. O mal-estar é inevitável. Mas a civilização se organiza quando cria pactos institucionais que limitam a violência.
“A justiça exige que a liberdade de um não se torne a opressão do outro. O desafio hoje é sustentar a alteridade, reconhecer que o outro não é uma extensão de mim nem uma ameaça a ser exterminada, mas condição da vida em comum”, reforça.
Democracia coletiva e democracia interior
Para a psicanalista, democracia não é apenas um regime de governo, mas também a capacidade de sustentar diferenças sem precisar aniquilá-las. E esse movimento começa dentro de cada um.
“É cômodo culpar apenas os algoritmos. Mais difícil é admitir que cada um precisa olhar para o próprio radicalismo, para o ódio que projeta no próximo, nos adversários, nos estranhos. Sem autocrítica, a agressividade se converte em sentença de morte; com reflexão, pode se tornar motor de criação”, diz.
Camaratta aponta que muitas vezes esse processo só se sustenta em espaços de confiança, como a análise pessoal.
“Há um nível de amadurecimento que só se alcança quando se pode ser real diante de outro ser humano, capaz de acolher nossas contradições sem anulá-las. Esse é o espírito da análise pessoal: oferecer um ambiente onde a destrutividade pode ser transformada em pensamento, em elaboração, em gesto criativo.”
O risco dos líderes perversos
O perigo, alerta, é entregar essa pulsão destrutiva a quem a legitima.
“Não há democracia coletiva sem democracia interior. É preciso suportar limites, reconhecer a própria pulsão destrutiva e não entregá-la de bandeja a líderes perversos que a instrumentalizam para conquistar poder”, enfatiza.
Para ela, o desafio contemporâneo é transformar fúria em palavra, ressentimento em pensamento, medo em coragem para a reflexão.
“Esse é um trabalho árduo e silencioso – e, ao mesmo tempo, civilizatório – que cada um precisa assumir. Porque, afinal, o outro não é um inimigo a ser eliminado, mas a condição daquilo que ainda ousamos chamar de civilização.”
Sobre Camila Camaratta
Camila Camaratta é psicóloga e psicanalista, formada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Gaúcha, possui formação em Psicanálise pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), onde é membro pleno. É também membro associado da Federação Latino-Americana de Associações de Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise (FLAPPSIP). Sócia-fundadora da Associação Piera Aulagnier, Camila atua como supervisora clínica e coordenadora de seminários.
Para saber mais, acesse: www.camilacamaratta.com.br
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ABIGAIL BORGES DOS REIS
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